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O desafio de Sergio Moro

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Ex-juiz federal será ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro

Sergio Moro, como ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, terá a oportunidade de mapear o sistema prisional e expor à população:

– os verdadeiros e atualizados números absoluto e relativo de presos no país;

– os números separados de presos provisórios, de pessoas em regime fechado, em semiaberto e em aberto;

– quais facções criminosas comandam quais presídios, como o Estado permite que isto aconteça e o que pode fazer para tomar o controle das respectivas unidades.

Desde que comecei a mostrar – em abril de 2014 – a manipulação dos dados prisionais, e a apontar de modo mais incisivo – a partir de junho de 2015 em artigo, e de janeiro de 2017 em artigo e vídeo –, como ela é feita para legitimar a alegação de que existe um suposto encarceramento em massa no Brasil e, assim, justificar a soltura de criminosos, o tema ganhou repercussão no debate público com outros artigos de autoridades que me comunicaram terem se baseado nas minhas análises, como o do promotor Luciano Gomes de Queiroz Coutinho, “Prender ou não prender? Eis a questão”, no Estadão, em janeiro de 2017, e o do então ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, Osmar Terra, “Vício e violência”, na Folha de S. Paulo, em março do mesmo ano.

Eu havia mostrado, por exemplo, que o relatório do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), divulgado pelo Ministério da Justiça do governo petista de Dilma Rousseff, sob a gestão de José Eduardo Cardozo, maquiava a posição do Brasil no ranking mundial de população carcerária, fazendo inclusive parecer que os dados absolutos eram relativos por meio de tabelas providencialmente recortadas.

A posição do Brasil – atualmente, a terceira em número absoluto de presos por país – vinha do ranking mundial feito pelo Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês), mas o Infopen omitia que o Brasil tem uma das maiores populações do mundo e que o próprio ICPS divulgava o ranking de número de presos por 100 mil habitantes, no qual o país está hoje na 28ª posição.

“Assim, não há excesso de presos no Brasil – o país está na proporção média do mundo”, escreveu Osmar Terra. “Faltam, na verdade, vagas para que os apenados possam cumprir sua pena com um mínimo de dignidade, para que os barões do tráfico fiquem isolados, sem contato com os demais presos.”

“Será tão difícil assim enxergar a importância de se construir mais presídios e aumentar o número de vagas no sistema prisional (…), para que a população tenha mais segurança?”, questionou Luciano Gomes. “A ‘obviofobia’ politicamente correta é um dos grandes males da atualidade.”

Em setembro de 2017, no artigo “O mito do encarceramento em massa”, publicado no Estadão, o também promotor Bruno Carpes mostrou que o número absoluto de presos ainda estava inflado no relatório do Infopen, afirmando que “o Ministério da Justiça buscou alavancar a posição brasileira no comparativo” entre os países, “tendo desrespeitado os critérios adotados pelo instituto internacional” (ICPS).

“Isto é, não observou que o estudo global corretamente considera como preso somente aquele que se encontra em regime integralmente fechado; e como preso provisório somente aquele que se encontra aguardando julgamento.

Por conseguinte, conforme o relatório do CNMP (…), o Brasil possui 456.108 presos – dentre provisórios e no regime fechado, e não 622.202. Essa brutal diferença influencia diretamente na taxa de encarceramento brasileiro (número de presos a cada 100 mil habitantes).

Assim, adotando-se o justo critério considerado pelos demais países, o Brasil passa a configurar na 60ª posição mundial e na 8ª posição da América do Sul (13 países), com 224 presos a cada 100 mil habitantes”, “próximo da taxa europeia, de 192”.

Em fevereiro de 2018, o desembargador Edison Brandão, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), exibiu no programa Roda Viva uma folha com o número de presos apenas em regime fechado e afirmou:

“Eu peguei hoje no site do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) isso aqui, olha. É oficial. Nós temos no regime fechado no Brasil 309.126 pessoas. [O Brasil tem] Uma população de 208 milhões e (é) o país que matou 64 mil quinhentas e poucas pessoas no ano passado. O país que mais mata no mundo tem isso aqui (de presos em regime fechado), na verdade. Encarceramento em massa onde?”

Seis meses depois, em agosto de 2018, o CNJ, sob a presidência da ministra e então presidente do STF Cármen Lúcia, publicou um relatório chamado “Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0: Cadastro Nacional de Presos”, cujo item 2.4 é intitulado “Presos por tipo de regime”. Ali se apresenta um número ainda menor de presos em regime fechado:

“Excetuadas as pessoas presas exclusivamente por processos criminais sem condenação [os presos provisórios] e desconsideradas as internações (medidas de segurança), e analisada a informação atinente a todas as guias de recolhimento provisórias e definitivas cadastradas no BNMP 2.0, chega-se à conclusão que 266.416 pessoas presas se encontram no regime fechado, 86.766 pessoas no regime semiaberto e 6.339 pessoas no regime aberto cumprindo esta pena em casa do albergado.”

Semiaberto é o regime que o condenado cumpre não em penitenciária, mas em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar, onde fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno. Aberto é o regime que o condenado cumpre em casa de albergado, situada em centro urbano e sem obstáculos para a fuga. Nem sempre, porém, existem no país colônias ou casas de albergado disponíveis para os condenados que cumprem ou progridem para esses regimes.

Por isso, o próprio relatório do CNJ registra que “os números apresentados para os regimes fechado, semiaberto e aberto não representam o quantitativo de pessoas que efetivamente estão cumprindo penas nesses regimes, pois a desativação de vagas e casas penais, especialmente dos regimes semiaberto e aberto, tem feito com que as pessoas condenadas nesses regimes passem a cumprir a pena em prisão domiciliar e monitoramento eletrônico”.

As ressalvas apenas confirmam a carência de vagas e casas penais no sistema como um todo e em nada mudam o dado mais relevante ao propósito deste artigo, pois ainda que haja condenados até mesmo em regime fechado que, por falta de vagas, não se encontram efetivamente presos em qualquer penitenciária, o número indicado de 266.416 é o de condenados em regime fechado que estão presos de fato.

Este número é muito menor que o de 726.712 presos contabilizados em relatório do Infopen de junho de 2016 e que foi repercutido distorcidamente pela imprensa como “o total de pessoas encarceradas no Brasil”.

(A propósito: o mesmo relatório apontou praticamente a metade em total de vagas no sistema prisional: 368.049 – ou seja: déficit de 358.663 vagas; sendo que 78% dos estabelecimentos penais têm mais presos que o número de vagas, ou 89% da população prisional estão em unidades superlotadas.)

Foi baseado neste número de presos do Infopen, aliás, que Ricardo Lewandowski, em sessão plenária de dezembro de 2018, tentou justificar a soltura de criminosos, inclusive corruptos, pelo decreto de indulto de Natal de Michel Temer de 2017. O ministro apenas arredondou o dado para “720 mil”, para facilitar a fala. Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes e Celso de Mello seguiram a mesma linha de Lewandowski, antes de Luiz Fux pedir vista e interromper o julgamento quando o placar estava em 6 votos a 2 (Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin).

Raul Jungmann, o ministro de Segurança Pública do governo de Michel Temer, também tentou justificar moralmente o indulto de Natal ao responder a uma pergunta minha na Jovem Pan citando os “726 mil presos que você tem dentro do país”. Jungmann criticou o “senso comum brasileiro” de que prender bandido resolve o problema da segurança pública:

“Vocês não se dão conta de que cada vez que você coloca alguém dentro de um presídio (…), para poder sobreviver (…) – já que, sendo uma instituição estatal, o próprio Estado não garante a vida de quem é preso – ele tem que jurar fidelidade a uma facção. (…) E quando ele sair um dia, ele é um escravo de uma facção. Então olhar a criminalidade e a violência só da rua até a porta do sistema prisional, é esquecer que o que acontece na rua – a bala perdida, o tráfico, o sequestro – é determinado de dentro do sistema prisional.”

Isto é, na prática, a confissão de uma autoridade de Estado de que o Estado não cuida do sistema prisional como deveria e por isso joga os criminosos de volta para o convívio da sociedade – esta mesma que Jungmann trata como se tivesse de aceitar docilmente as teses de que conviver com criminosos livres é a melhor opção para ela e de que estes são menos suscetíveis a se tornarem escravos de uma facção que os criminosos presos.

O ministro ainda reclamou “que hoje 40% dos presos”, “292 mil dos 726 mil”, “não têm nenhuma condenação”, “porque o sistema judiciário não tem velocidade para fazer isso”. É mais uma admissão de que o Estado não consegue resolver o problema, embora o CNJ tenha defendido o Judiciário neste ponto, em seu relatório de agosto, atribuindo a responsabilidade para a legislação, ou seja, para o Poder Legislativo:

“Note-se, ainda, que um percentual elevado de presos provisórios não conduz, por si, à conclusão de ineficiência do Poder Judiciário. Do contrário, a observância dos termos e prazos que garantem a higidez do processo penal implicam por vezes na dilação dos prazos para encerramento da instrução. Em outras palavras, pode não haver disfunção alguma na situação em que a prisão preventiva se iniciou há 30, 60 ou 90 dias e em que não houve a prolação de sentença. No sistema jurídico brasileiro não há, salvo em parte dos procedimentos especiais, termo legal que limite a prisão processual a um período fixo. Desse modo, apenas a avaliação individual das circunstâncias de cada caso concreto permite a verificação de eventual excesso de prazo, sendo indevida a generalização corrente de que o percentual, mais ou menos elevado, de presos provisórios aponta para uma ilegalidade de responsabilidade do Poder Judiciário.”

Em resumo: enquanto as autoridades do Estado jogam umas para as outras a responsabilidade pelos problemas do sistema penitenciário brasileiro e/ou embarcam juntas no lobby anticarcerário que as exime de tomar qualquer providência individual ou coletiva, institucional ou interinstitucional, a população continua sendo vítima diária dos criminosos soltos e presos, bem como da leniência estatal com eles.

Um dos desafios de Sergio Moro em matéria de segurança pública é trazer a transparência faltante a todas essas questões (e ainda há outras relembradas nos links abaixo), formular propostas e estratégias para solucioná-las, e finalmente deixar para trás uma era de insultos de autoridades à inteligência dos pagadores de impostos do país.

Feliz 2019.

(Felipe Moura Brasil, 31 de dezembro de 2018)